quinta-feira, 2 de julho de 2009

Copo vazio - Adriana Kairos

Chegou ao ponto do ônibus arrastando o corpo pesado como todos os dias. Deuzira estava sempre cansada. Cansada da vida, da lida, da ida de volta para casa, diariamente, espremida num ônibus lotado do Centro a São Cristóvão. Seus olhos eram como grandes covas negras de um abismo sem fim de fadiga e indiferença. Nunca pensara o mundo. Suas ambições pequenas concentravam-se em alimentar seus seis vira-latas, que recolhera nas ruas em breves momentos de compaixão. E, também, pagar em dia o seu carnê das casas Bahia. Mulherzinha comum. Igualzinha a qualquer um. Sem viso nem “bum”. Adotara um hábito estranho, compartilhado pela maioria dos da sua espécie. Adorava ouvir as notícias policiais pelo rádio. Encantava-lhe as histórias mais, absurdamente, violentas, as de narrações tão truculentas, que o sangue das vítimas parecia escorrer através de suas orelhas gordas e peludas. Os fones ficavam tão, incrivelmente, colados aos ouvidos que era para Deuzira não perder uma gota de palavra que fosse. Em alguns momentos balançava a cabeça, como se reprovasse os atos esdrúxulos narrados pelo locutor, mas que em seu peito, bem lá no fundo, sentia uma bizarra satisfação. Era a sua novela preferida: a desgraça alheia.
Carregava sempre consigo uma bolsa, igualmente pesada, a tira colo. Bolsa que continha a sua vida, dizia. Um guarda-chuva de florzinhas azuis, quebrado e embrulhado em uma sacola plástica preta. Tão preta quanto os seus pulmões, escurecidos pela nicotina do maldito vício, que a matava aos poucos, mas Deuzira não tinha presa de morrer. Precisava pagar pelo menos o carnê da loja. O nome limpo era tudo o que tinha por herdade. Na bolsa também havia um pente preto, desses que não custam mais que um real, para desembaraçar os cabelos, naturalmente, frisados com ares de macarrão instantâneo. Uma sandalhinha (uma Havaiana genérica) para o caso de querer se sentir a vontade onde quer que fosse. Um casaquinho leve, ainda que o calor passasse dos quarenta graus. Além de: espelho, batom, papel higiênico, absorvente... Porém, o objeto mais significativo que passeava dentro daquela sacola de utilidades era um majestoso celular. Que além de símbolo de status e chamariz de ladrão, era um gasto desproporcional ao seu orçamento tão apertado. De fato, Deuzira ficou endividada por longos meses, mas precisava tê-lo, dizia. E não poupou esforços, caprichou na ostentação e comprou o que oferecia mais acessórios e recursos possíveis, ainda que não os soubesse usar. Último modelo, só faltava fazer chover, o sonho de qualquer consumista. Suas luzinhas eram, para ela, o próprio brilho do sucesso, irradiando, em contraste com suas mãos calejadas de unhas mal feitas.

Não tinha um livro naquela bolsa. Um jornal ou qualquer outra coisa que pudesse, de alguma forma interferir na sua maneira provinciana de pensar o mundo. Nada. As únicas leituras encontradas naquela sacola eram duas revistas de fofocas como o último escândalo de uma dessas celebridades instantâneas, como manchete e o resumo da novela das oito, marcado a caneta. Morava sozinha. Não tinha ninguém a sua espera. Ninguém para sentir sua falta. E já estava habituada a essa vida de mosteiro e não mais a angustiava a solidão. Era incapaz de um gesto de carinho, talvez, nunca lhe tiveram tratado com gentileza ou ao menos com compaixão, por um dia ter tido uma infância tão difícil de privações, sem oportunidades, mas que julgara a ter vencido e tinha o super celular para comprovar isso. A vida dura, a solidão e os noticiários de horror lhes roubaram a ternura, se um dia a teve.

Quando seu ônibus chegou, milagrosamente vazio, entrou arrastando-se, pagando a passagem automaticamente sem nem olhar para o cobrador. Sem notar que estava diante de um igual. De igual origem e condição: cansado, pesado, seco e vazio, mas que também ostentava o mesmo troféu. O celular último modelo que o módico salário, naturalmente, não poderia pagar, a não ser que seu valor fosse dividido, em mágicas folhinhas de um carnê de loja popular, a perder de vista.

Sentou seu corpo pesado em um acento próximo a porta de saída. Estava dormindo, babando e batendo a cabeça na janela quando entrou um rapaz negro, de cabelos loiros, pelo poder da água oxigenada, magrelo, com uma bermuda herdada de um defunto maior que ele. Isto porque se via sua cueca frouxa e sem-vergonha, que apresentava, a quem quisesse ver, o seu rego magro. Usava chinelos, não trazia camisa, mas levava um grande cordão, de bijuteria barata, com um pingente de cifrão, ao pescoço.

Quando Deuzira abriu os olhos e deu-se diante a tal figura entrou em pânico. Quase surtou. Mas o pior para ela não era o fato dele estar ali mas sim, de não ter visto em que ponto ele entrou, se havia tempo que ele estava no ônibus e principalmente, como ele havia entrado... Se pagou a passagem, de carona, ou se havia feito pior... Se entrou por ter ameaçado o motorista. De certo, é que esse rapaz tirou o sono de Deuzira, que sempre aproveitava a curta viagem do Centro a São Cristóvão para descansar antes de chegar em casa e começar uma nova rotina de trabalho e limpeza em seu, minúsculo, quitinete, com seus cães.

No susto dessa terrível visão, para ela, olhou sem conseguir disfarçar a ansiedade, para o colo, para ter certeza de que sua bolsa ainda estava lá. Pôs a mão, desta vez discretamente, pela abertura da sacola para assegurar-se de que não havia perdido o celular durante o sono. Tudo em ordem. Subitamente, começou a imaginar que estivesse vivendo alguma daquelas histórias de violência que adorava ouvir, ao meio-dia, numa estação AM. Pela primeira vez, em 18 anos, reparou mais que as mãos do cobrador. Também viu seus olhos arregalados do mesmo espanto, pois afinal, vinha do mesmo barro. Ela percebeu que o cobrador, mesmo com as mãos trêmulas tentava, dissimuladamente, esconder o seu troféuzinho enfiando-o dentro das calças.

O tal pesadelo andava de um lado a outro do ônibus, com um tom de voz alto conversava com o motorista e com outros passageiros, num dialeto próprio, recheado de gírias e palavrões. Gargalhando profundamente como se estivesse na cozinha da casa de um vizinho, num domingo, assaltando a geladeira, disfarçadamente, enquanto entretém, com o seu riso, os outros membros da casa. Deuzira havia ouvido histórias demais. Porém, o que a afligia, era não poder ver, de onde estava, a feição do motorista. E perceber se ele estava com medo ou assustado como ela e o cobrador que a essas alturas já havia engolido a aliança de ouro 18k, do seu casamento com a nega Leia. Uma mulata de parar o trânsito, passista da Imperatriz, que apesar de já ter sido casada e dessa união anterior, ter tido dois filhos, quando ele lhe propôs casamento a morena foi taxativa: “- Só caso se você me der uma aliança de ouro 18 pra botar no meu dedo.” Só ele sabia quantas horas extras havia feito por esses anéis. Depois... Era só tomar um laxante.

Deuzira também sabia quantas janelas, de prédios altos, havia tido que limpar, quantos banheiros e até cachorros havia tido que lavar. Quantos fins de semana perdidos para arrumar mais um dinheirinho indo fazer limpeza nas casas de campo dos patrões. Por isso, é que começou a fazer um movimento estranho na cadeira. Na tentativa de esconder a bolsa entre as pernas por baixo da saia, começou a agir de forma estranha. Não conseguia esconder a agonia e na sua ânsia, o cobrador, seu cúmplice no desespero, chegou a pensar que ela esconderia a bolsa mais profundamente do que realmente podia. Seu medo havia se tornado tão grande, por àquelas horas, que sua respiração forte e sua cara pálida, naquele ônibus quase vazio, chamaram a atenção do rapaz, que voltou-se para ela com o seu vozeirão de barítono, disse-lhe “- O quê que tu tem, tia?” Foi o bastante para que Deuzira começasse a chorar, a urinar nas calças e a rezar a santos de nomes impronunciáveis, para que tudo acabasse logo e ela saísse viva dali. Quando o negro-loiro percebeu que Deuzira estava fragilizada, levou as mãos a ela que logo começou a gritar no mais absoluto pavor. O cobrador, igualmente aterrorizado, disparou a cuspir frases do tipo: “- Deixe ela em paz!”, “- Ela é trabalhadora!”

Bestificado com todo aquele circo, o rapaz gritou ao motorista que o deixasse no próximo ponto, onde ao descer encontrou uma senhora, a qual chamou de “vó”, beijou-a nas murchinhas maçãs do rosto, tomou-lhe a benção e as sacolas pesadas, das mãos, que carregava e seguiram risonhos subindo as escadarias do morro. Ele contando a ela essa absurda história, riam-se achando graça e exclamando: “- Que gente doida!”

Enquanto isso, Deuzira e o cobrador recebiam socorro de um para-médico que coincidentemente viajava com eles.

“É sempre bom lembrar:
Que um copo vazio
Está cheio de ar.” ( Chico Buarque – composição: Gilberto Gil)

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