quinta-feira, 2 de julho de 2009

A culpa é delas

O ataque dos intelectuais de esquerda ao feminismo

Paula Goulart

Na abertura de seu artigo "Preconceitos nas charges de O Pasquim: mulheres e a luta pelo controle do corpo", de 2008, Raquel Soihet apresenta trechos de uma crônica escrita por Fausto Wolf no Jornal do Brasil em 2005, intitulada Restos da Realidade. No texto, o autor despreza o movimento feminista, afirmando que este não tinha olhares para todas as classes de mulheres e cita as mulheres pobres como exemplo. Após encontrar um bebê morto numa lata de lixo em Ipanema, próximo a uma favela, Wolff faz entender com as palavras sua suposição de que aquela criança pertencera a uma mulher pobre. Responsabiliza por isso as mulheres de classe média que abandonaram seus lares e seus afazeres femininos para disputarem mercado com os homens, e diz, ainda, que a revolução feminista teve como conseqüência o que ele denomina como "a mulher objeto"; sem alma, sem caráter, quase sempre mal paga e sempre mal comida. Sem dúvida uma depreciação não apenas do sexo feminino, mas de todas as lutas e conquistas pelas quais passaram as mulheres na história desta sociedade.

A repressão feminina, antes vivenciada de forma individualizada, teve no coletivo a oportunidade de maior expressão. As feministas alertavam que sua opressão era de cunho político-social, e usavam a expressão "o pessoal é político" para alertar as mulheres da real natureza da posição social em que se encaixaram por décadas. Foi questionando os reais valores e determinações culturais e sociais que o feminismo ganhou sua forma e se permitiu ser, para alguns como Celso Furtado, "o maior e mais importante movimento deste final de século".
Em meados dos anos 60, inúmeras mudanças se propunham, e rebeliões em favor dos negros, dos direitos civis e dos vietnamitas se faziam presentes. Emergia, então, nos Estados Unidos e em países europeus, o espaço feminista em meio a estas insurreições. Enquanto isso, o golpe militar insurgia no Brasil. O feminismo emergiu numa época em que qualquer organização que se propunha a reivindicar seus direitos era vista com maus olhos pelo governo. Também os esquerdistas se opuseram aos movimentos feministas neste país, achando que os movimentos de resistência deviam concentrar-se na luta contra a ditadura vigente. Além de julgar o movimento feminista de prioridade secundária - quando não desnecessário - no momento histórico em que viviam, os esquerdistas acreditavam que o feminismo era um fenômeno importado, um modismo passageiro. Foi neste contexto confuso que O Pasquim usou dos mesmos recursos com os quais estereotipava, caricaturava e ridicularizava o regime vigente para fazer o mesmo com as militantes que lutavam por seus direitos.

As questões pelas quais as mulheres lutavam, então, ganharam maior peso, dado o contexto histórico em que as lutas se inseriram. Reivindicavam-se os direitos da cidadania, do corpo, da sexualidade e da autonomia sobre suas vidas. Lutava-se para transgredir os valores impostos e pelo direito de imporem-se os seus próprios. Numa época de condenação à desvirgindade fora de um casamento e de caça e assassinato às mulheres que ousassem exercer sua sexualidade fora das leis do sagrado matrimônio (enquanto os homens o faziam para provar sua virilidade), as significações das lutas contra esta realidade ganham maior relevância e respeito.

As colocações sobre o corpo e a sexualidade encontravam dificuldades e pouco espaço mesmo dentro do movimento feminista. Como exemplo, pode-se citar o Centro da Mulher Brasileira (CMB) onde se destacava as questões socioeconômicas enquanto temas como a violência doméstica e a sexualidade, questões privilegiadas nas lutas feministas dos Estados Unidos e Europa, eram evitados.

Em 1980, quando a prática do aborto já era legalizada em diversos países europeus, ocorreu a primeira mobilização em favor desta prática no Brasil. As feministas distribuíram panfletos protestando “contra a ilegalidade do aborto, contra a política de natalidade do governo e se posicionavam pelo direito de abortar como último recurso, assim como pelo direito de optar por ter ou não ter filhos”. A luta pelo aborto foi então concentrada na conscientização para com a classe feminina sobre a importância deste problema e de sua luta pelo direito de abortar. No dossiê produzido pelo Centro Informação de Segurança da Aeronáutica sobre a entrevista concedida pelo CMB ao Fantástico em janeiro de 1980, os movimentos em prol da legalização do aborto estariam ligados ao comunismo internacional, uma contradição, posto o movimento feminista estar presente em países assumidamente capitalistas.

Outro episódio destacado por Soihet foi o ocorrido no Dia de Ação Internacional, em que, na intenção de atingir os setores populares, militantes distribuíram panfletos com os dizeres “Nossos corpos nos pertencem”. Alguns comunistas trocaram as letras e fizeram o trocadilho “Vossos corpos nos pertencem”. Na mesma lógica, o cartunista Ziraldo ridicularizou o intelecto feminino em uma de suas charges, escrevendo “Nossos corpos nus pertencem”. Um grupo de feministas revoltou-se com a atitude do artista e picharam sua casa com os dizeres: “Ziraldo, o Doca Street do Humor”, o que o fez, a partir de então, criticar sistematicamente o movimento feminista.

A luta pelos direitos e por um lugar na sociedade foi de extrema relevância e significação para a classe feminina. A evolução do papel da mulher e a transformação dos hábitos culturais e da visão de sua figura para além dos afazeres domésticos, sua conquista nas questões não apenas sociais, mas também relativas ao seu corpo e sua autonomia sobre o mesmo são de inigualável importância. No entanto, ainda encontra-se muita resistência nos tradicionalismos enraizados numa cultura – e não raramente em conceitos religiosos – que precisam acompanhar a evolução da sociedade. Não obstante os entraves sociais, as lutas pelos direitos da mulher ainda têm muitas conquistas a realizar.

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